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Subterfúgios do narcisismo das elites – 28/04/2025 – Michael França

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Não é que o Brasil seja um país sem inclusão. É um país onde ela é administrada com bastante zelo para não perturbar demais a ordem das coisas. Um país onde o elevador social até existe, mas só funciona com senha. E, não por eventualidade, quem conhece o código quase sempre tem o mesmo sobrenome de quem instalou o sistema.

É preciso notar a astúcia do jogo. Temos uma escol que não costuma negar a ingresso. Ela somente exige senhas que só seus pares conhecem. Dizem que apoiam a multiplicidade, desde que se fale uma vez que eles, se vista uma vez que eles, que se seja uma vez que eles. Porém, veja que curioso… É muito difícil falar uma vez que eles, se vestir uma vez que eles, performar uma vez que eles tendo tido uma origem distinta. E, sobretudo, sem ter tido os mesmos recursos que eles.

A retórica da régua subida é o subterfúgio preposto daqueles que se imaginam guardiões da meritocracia, mas que temem perder o monopólio de seus espaços, geralmente herdados. A régua, enfim, é deles. Foram eles que a construíram, que definiram seus critérios, que decidiram quais habilidades contam e quais são irrelevantes.

E a preocupação por “não encolher a régua” ignora uma pergunta relevante: quem decidiu onde ela deve estar? No final do dia, a teoria de que existe um patamar neutro de superioridade é uma ficção muito útil para a perpetuação da ordem das coisas.

O que chamamos de qualidade acaba refletindo somente a estética dominante do viril branco, rico e nascido no origem do privilégio. E a régua seguirá servindo para medir os outros, nunca a si mesmos. É uma régua que dificilmente é usada para medir suas vantagens diante dos demais.

Hoje, a sofisticação desse elitismo embuçado está no traçado das regras. E, uma vez que bons cartógrafos do privilégio, os donos do jogo aprenderam a mapear com precisão os atalhos que favorecem os seus, mas sempre com semblante de imparcialidade.

Os curadores da superioridade alheia medem tudo, menos o potencial de transformar e o de produzir valor ao incluir perspectivas nem melhores nem piores, somente diferentes. No final, esses guardiões do status quo estão excluindo talentos que cresceram pulando obstáculos que a escol sequer sabe nomear. Desse modo, a exclusão deixou de ser explícita para tornar-se uma arte.

Se a régua fosse realmente técnica, muitos dos que hoje a empunham com uma arrogante empolgação talvez não passassem do segundo degrau, pois são incapazes de enxergar o mundo a um palmo de intervalo do próprio nariz. A manutenção dessa régua imaginária serve menos à superioridade e mais ao controle de quem pode falar, pode simbolizar, pode sentenciar.

No fundo, nosso maior pânico, membros dessa escol viciada em si mesma, talvez não seja ver a régua tombar, mas ter de competir em paridade de condições. Soma-se a isso, uma vez que já destaquei na última pilastra, o indumento de vários de nossos colegas terem se tornado uma caricatura ao se perderem em uma paixão cega pela própria imagem.

Mas uma vez que diriam os psicanalistas, o narcisismo só se sustenta enquanto o espelho permanece inviolado. Talvez esta seja a hora de trincá-lo.

Esta pilastra representa uma prolongação da série que tenho feito sobre os desafios das elites. O texto é uma homenagem à música “Sorrow, Tears & Blood”, de Fela Kuti.


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