Outro dia, numa notícia sobre notório político infame —não vou manifestar o nome, só as iniciais: Eduardo Bolsonaro—, um jornal informou que seu salário era de “pouco mais de R$ 46, 3 milénio”. Embatuquei. Quanto será “pouco mais de R$ 46, 3 milénio”? R$ 46.310? R$ 46.320? Pouco antes, eu lera vibrantes relatos de que Oscar, ex-craque do basquete, fizera “pouco mais de 49 milénio pontos” e que sairia um novo léxico “Aurélio” com “pouco mais de 200 mil palavras”. Se a teoria era enfatizar a grandeza dos números, não seria melhor manifestar que Oscar chegara a “quase 50 milénio pontos” e que o Aurélio teria “mais de 200 milénio palavras”? O “pouco mais” não diminuía essa grandeza? Por que usá-lo? Porque, às vezes, escrevemos no piloto automático.
Eu sei, é difícil evitar notório automatismo ao ortografar, ainda mais no caso de profissionais que escrevem demais. Vasqueiro o dia em que não leio que fulano “bateu o martelo” a reverência de alguma coisa —ou seja, tomou uma decisão, optou por uma escolha. Mas, pela incidência com que hoje se “bate o martelo”, vivemos sob uma cacofonia de marteladas. Por que isso? Porque “maltratar o martelo” já nos vem pronto aos dedos, sem passar antes pela cabeça. Se não ficarmos atentos, vai se intrometer sem cerimônia no texto.
Os exemplos são muitos e só reforçam minha fé de que ninguém escreve particularmente muito. Alguns, sim, reescrevem particularmente muito —escrito o texto, concentram-se e o enxugam de clichês, palavras repetidas, excesso de advérbios, frases pouco claras e outros paralelepípedos. Com tudo expurgado, dão a sentimento de que “escrevem muito”.
E uma vez que reescrever muito? Uma das maneiras é incumbir no próprio ouvido. Ao ler o que acabamos de ortografar, podemos escutar o texto que ressoa dentro de nossa cabeça. O ouvido interno costuma ser o melhor revisor —dispõe de uma câmara de repercussão que nos faz suspeitar de que alguma coisa está incorrecto. Daí é meter a caneta ou o mouse.
E se mesmo assim o texto não lhe toar muito, fique notório: não foi o seu ouvido que entortou.