Para sorte de quem gosta de divulgação científica bem-feita em formato de áudio, há cada vez mais opções excelentes de podcasts brasileiros nessa seara. Têm aparecido tantos, aliás, que mal tenho conseguido acompanhá-los, apesar da minha paixão pelo formato. Não faz muito tempo, consegui tirar o tardança e ouvir os oito episódios de “Os Caminhos de Niéde Guidon”, apresentado pela jornalista Kelly Cristina Spinelli, e venho cá ao blog recomendá-lo vivamente ao leitor.
Durante muito tempo, a figura da arqueóloga paulista Niéde Guidon, 92, teve um status quase legendário, pelo seu trabalho combativo e (só aparentemente) solitário na serra da Capivara (PI). Ficava a sensação de que, praticamente sozinha, ela descobrira uma presença antiquíssima do ser humano no Nordeste brasílio, chegando a 50 milénio anos e até mais, e fora injustamente detonada por cientistas concorrentes de fora do Brasil, em peculiar dos EUA, pela ousadia.
Há vários grãos de verdade nesse retrato inicial, mas é simples que a coisa é muito mais complicada do que isso. O que os episódios de “Os Caminhos de Niéde Guidon” fazem muitíssimo muito é, em primeiro lugar, transformar a personagem-título em mulher de músculos e osso (e sangue quente, e personalidade divertidamente complicada); e, em segundo lugar, colocá-la em seu contexto de amigos, colegas, concorrentes e desafetos.
O resultado é um retrato muito mais tridimensional (aliás, quadridimensional) de Guidon, a encetar pelo recreativo momento (pelo menos hoje, com o distanciamento histórico) de sua quase expulsão da pequena Itápolis (SP) em 1959, quando a portanto jovem professora de ciências foi vítima de uma espécie de caça às bruxas anticomunista popular que zero fica a obrigação ao que ocorreria em 1964 ou mesmo hoje, com os malucos da “Escola Sem Partido”.
A narrativa também acerta ao retratar com precisão e empatia os moradores da serra da Capivara e sua relação com o projeto científico (e, mais tarde, educacional e mesmo de desenvolvimento econômico) estimulado por Guidon.
Quanto a possíveis calcanhares-de-aquiles, o resumo da controvérsia sobre as datações da presença humana da região é competente. Mas senti falta de uma estudo que fosse além desse tema e detalhasse mais o contexto mais espaçoso das descobertas na região. É, porém, um defeito menor.
O podcast contou com o esteio do Instituto Serrapilheira.