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O duelo de fazer uma foto no estúdio – 20/02/2025 – Tati Bernardi

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Chego ao estúdio e dou de rosto com ele. O desprazer que eu sinto quando nos esbarramos. O corpo fica eriçado, retorcido, e, conhecendo meus prazeres tortos, já sei que a atmosfera insalubre me deixa excitada. O duelo de tourear o pior dos inimigos.

Preciso fazer as fotos, a pedido da editora. Lanço um livro novo em breve. Mas sempre que uma câmera fotográfica aparece na minha frente, junto vem aquele demônio: o meu incansável humor autodepreciativo.

Se fico com a boca entreaberta, percebo rapidamente o quanto sou ridícula: pareço uma trouxa esperando uma mosca de banana grudar no meu firmamento da boca. O que eu quero com esses lábios descolados? Com esse ponta de gozo fingido? Fazer os outros pensarem em lamento, sexo vocal, falta de aparelho nos dentes, sinusite? Quem faz a sexy em foto para lançar livro?

Mas posso ser ainda mais cafona, concluo. Posso fazer aquela rosto imbecil de intelectual. Olha uma vez que estou quase vesga depois das últimas leituras do mês! Sou séria, seguro meu queixo, uso óculos, vejo além do que todos veem, encaro sua limitação. Patética!

Tenho botox na testa, portanto, quando tento fazer rosto de brava, minhas asas nasais arregaçam até eu parecer um touro em fuga. Sorrindo demais, minhas bochechas sobem e terminam de fechar meus olhos já estreitados pelas molengas pálpebras que desabam alguns milímetros por minuto.

Não existe a rosto de zero, a rosto neutra; essa é a minha rosto quando não tem uma câmera na minha frente. Qualquer outra rosto é uma tentativa de não parecer uma imbecil e, justamente por isso, é a rosto suprema de imbecilidade.

Portanto me pedem para ser meio engraçada. “Meio engraçada” entendo que é uma supercílio um pouco assustada, para cima (não que ela suba muito, por pretexto do botox), aquela boca de “que susto controlado!”. É a rosto da propaganda de pizza em promoção. É a rosto do deu a louca no gerente. Mas é pra propalar um livro!

A boca fechada ressalta ainda mais as linhas de boneco de ventríloquo que apareceram de uns meses para cá. Se cruzo os braços, penso no ser humano do marketing que acabou de ser contratado uma vez que CMO e aparece em qualquer jornal de propaganda inflado de orgulho. Tudo o que sabem, tanta luta, e agora: rumo a melhores vendas!

Tento a mãozinha na cintura, fazendo força para o bíceps parecer malhado, e não a tamanho amorfa que adquiri depois dos 45 anos. Mas eu tô vendendo livro ou a novidade saia rodada da loja de bairro da tia Neide? Com o braço pendurado ao longo do corpo, minhas axilas flácidas formam duas pequenas vagininhas entre o ombro e o tronco.

Sentada, espeque o cotovelo no joelho e o queixo na mão. Encaro a câmera. Deus ajude que vergar meu corpo assim não me faça parecer um cachorro da raça shar pei. Ou, melhor ainda, Deus ajude que depois da foto tratada eu não me arrependa da pose de quem está sentada na privada encarando uma sujeira no azulejo.

Por termo, jogo a cabeça para o lado. Tenho horror a esse tipo de foto. Olha uma vez que ela é fofa. Olha que pacificada, domesticada. Cabecinha de lado. O falo derrubado. A cabeça do falo finalmente apaziguada. Trepei com meu ego e tombei muito gulodice. Eu só precisava tirar uma foto, mas meu pensamento não admite uma imagem congelada sem principiar a se movimentar insanamente.


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