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Nas ditaduras, a vida não tem paredes e nem mesmo os sonhos estão a salvo – 17/03/2025 – João Pereira Coutinho

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Alguém dizia que o verdadeiro problema de estar recluso é não poder trancar a porta por dentro.

Nunca estive recluso. Mas imagino que esse seja o maior dos terrores: a porta se abre a qualquer momento para que o Estado exerça a sua violência sobre nós.

Em ditadura, deve ser a mesma coisa. Aliás, o que é uma ditadura senão uma prisão coletiva?

O filme “Ainda Estou Aqui” ilustra essa dinâmica na sublimidade. Verdade: os jagunços batem à porta dos Paiva. Mas é unicamente uma cortesia ilusória.

A invasão do espaço íntimo, com seu cortejo de abusos e boçalidades, é o prelúdio de um delito maior: o assalto a uma família e a ruína física de um dos seus membros.

Para o poder ditatorial, a vida não tem paredes, eis o ponto. Só os sonhos estão a salvo, embora haja quem discorde: a escritora alemã Charlotte Beradt (1907–1986) dedicou-se a registrar os sonhos que os alemães tiveram entre 1933 e 1939 para mostrar os tentáculos invisíveis do totalitarismo.

O resultado é uma obra-prima intitulada “O Terceiro Reich do Sonho“, traduzida para o português por Mário Gomes e publicada pela editora lusa VS. É um dos meus grandes livros do ano.

Não há violência física nesses sonhos, porque Beradt optou por não publicar esses relatos. Curiosamente, Walter Salles também ocultou essa dimensão mais primitiva e bárbara. Entendo. Não devemos dar aos algozes a alegria de contemplarem suas próprias atrocidades.

A violência assume outra forma: a transformação do cotidiano em um “estado de exceção”, onde não há lugar para segurança e previsibilidade e onde até os objetos mais banais se tornam provas incriminatórias.

Ou logo, em vozes inquisitoriais, repetindo mecanicamente a propaganda do regime ou acusando os indivíduos de suas falhas e misérias, porquê em “1984”, de George Orwell.

Os alemães sob Hitler sonhavam que as palavras mais inocentes —”eu”, “Deus”, “infelicidade”– os condenavam de subitâneo. Sonhavam que os próprios pensamentos estavam sob escuta. Sonhavam em língua estrangeira (e estranha) para que nem eles pudessem interpretar o que diziam ou pensavam.

Entre 1933 e 1939, sonhou-se muito com narizes grandes e peles morenas, mesmo entre os “arianos”, porquê se as dimensões do corpo ou a pigmentação da pele fossem marcas de infâmia.

Documentos ou passaportes eram constantes nesses filmes oníricos. Uma vez que se o papel claro, ou inverídico, fosse a diferença fundamental entre a vida e a morte. Ver os documentos destruídos, perdidos, esquecidos –o maior dos pesadelos, no sentido literal e metafórico.

E que proferir da professora de matemática que sonhava recorrentemente com uma Alemanha onde até a matemática tinha sido proibida?

Ela, apesar de tudo, conseguia ainda ortografar algumas equações em sigilo, porquê se os números a mantivessem ligada a uma vida que perdera.

No livro de Beradt, dois sonhos em peculiar possuem qualidades literárias que os elevam supra de um simples documento histórico. Poderiam ter sido escritos por Kafka, não fosse ele já o responsável de todos os pesadelos possíveis.

O primeiro, recorrente, pertence a um industrial teuto, social-democrata, que recebe a visitante de Goebbels na sua fábrica. Em frente aos trabalhadores, o varão vagar 30 longos minutos a levantar o braço para fazer a saudação nazi.

Numa das versões, o esforço é tanto que o industrial quebra a pilastra, porquê se fosse um boneco enferrujado.

No segundo sonho, um médico antinazista é chamado de urgência para tratar Hitler. O varão vai, trato o ditador, é elogiado por ele –e sente orgulho pelo seu feito ao mesmo tempo em que chora de vergonha por sentir orgulho.

Nos dois casos, a violência não vem unicamente do regime, mas também dos próprios indivíduos contra si mesmos. Essa é uma das conclusões de Charlotte Beradt sobre o totalitarismo: o terror e o terror são tão interiorizados que os indivíduos acabam se tornando “cúmplices” involuntários da própria submissão.

Aliás, se dúvidas houvesse, a autora unicamente cartografou um único sonho em que Hitler era assassinado. Matar o tirano era não só indizível porquê inimaginável.

Nessa galeria de sonhos, Beradt dedica um capítulo aos sonhos dos judeus, que, estranhamente, tragicamente, oscilam entre a tentativa de namorar as boas graças de Hitler e a imperiosa urgência de fugir dele.

Num desses sonhos, um judeu viaja ao Único País que não Odeia Judeus (assim referido), atravessando as terras geladas da Lapônia. Mas, ao chegar à fronteira da salvação, até essa última porta se fecha na sua rosto.

Entre as portas que não conseguimos trancar e aquelas que não conseguimos transfixar, que venha o diabo e escolha.


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