Qualquer tempo detrás escrevi o prefácio de um livro sobre curvas planas de autoria de três colegas queridos. Comecei afirmando que “matemáticos são pessoas felizes, pois fazem aquilo de que gostam”. É verdade, pelo menos na minha experiência, mas não quer expressar que tudo seja silêncio e paixão no mundo dos números: às vezes o bicho pega.
Há até um livro sobre o tema, “Grandes Brigas na Matemática“, em que o noticiarista norte-americano Hal Hellman descreve em detalhes uma dezena de desavenças mais ou menos acaloradas entre matemáticos. Hellman não tinha formação prévia na extensão, e seus critérios de escolha não são sempre perfeitos, mas o livro constitui, assim mesmo, leitura divertida e instrutiva.
Dos virulentos ataques de Niccolò Tartaglia a Girolamo Cardano a saudação da solução da equação cúbica, no século 16, à trágica discórdia entre Leopold Kronecker e Georg Cantor em torno do concepção de infinito, no século 19, são dez ótimas oportunidades para constatar que, mesmo sendo universal e absoluta em seu teor, a matemática não deixa de ser uma atividade humana, sujeita aos humores (e egos) de quem a pratica.
A combate matemática mais famosa é, provavelmente, a infame disputa entre o germânico Gottfried Leibniz (1646–1716) e o inglês Isaac Newton (1643–1727) pelo crédito da invenção do cômputo. A resposta correta à pergunta “Quem descobriu primeiro?” é “Ambos”. Outrossim, algumas de suas ideias tinham sido antecipadas por outros, até mesmo por Arquimedes, no século 3 a.C..
Ainda assim, a repugnante divergência entre os dois cresceu até as proporções de um conflito internacional, com a Inglaterra e sua esfera de influência do lado de Newton, e a maioria da Europa continental defendendo a primazia de Leibniz. Há quem veja entre seus efeitos nocivos o acentuado declínio da matemática inglesa no século subsequente.
A teoria é que, embora as ideias de Newton e Leibniz fossem também corretas, e equivalentes, a linguagem usada pelo germânico era muito superior, muito mais intuitiva, o que é certamente verdade. Ao privar-se de usá-la, para mostrarem sua fidelidade a Newton, os matemáticos ingleses abriram mão de uma utensílio poderosa, que os seus colegas franceses, italianos, alemães etc utilizaram com maestria.
Eu acredito que a decadência da matemática inglesa nesse período teve mais do que uma motivo, mas aceito que essa tenha sido uma delas. Tanto mais que a Inglaterra só recuperou o seu lugar entre as potências europeias da matemática depois que a notação de Leibniz se tornou popular no país, nas primeiras décadas do século 19.
Outras brigas matemáticas, ainda que também acaloradas, foram muito mais elegantes, e profundas. A minha favorita é o debate sobre os fundamentos da disciplina travado, na primeira dez do século 20, pelo galicismo Henri Poincaré (1854–1912) e pelo inglês Betrand Russel (1872–1970). Interrompido pelo falecimento prematuro do galicismo, ele foi continuado pelos seguidores das duas escolas de pensamento que Poincaré e Russel lideravam, o intuicionismo e o logicismo, vindo a desembocar nos teoremas de Kurt Gödel na dez de 1930. Será o tema da semana que vem.