No pausa entre um incidente e outro de “Sintonia”, eu já misturava vida real com ficção. Passava a fundir obras distintas com esta que, ao meu inquieto ver, pareciam fazer das tripas coração para não me quebrar por dentro —ou o completo oposto: estilhaçar-me demonstravam querer. Nando, personagem interpretado por Christian Malheiros, para mim virou o Neo com proceder, recluso à Matrix de quebrada. Era “o correria” que oscilava entre as próprias contradições e as da estrutura que o escalou para os papéis de protagonista da trama e opositor da própria história. Sempre enrolado, sempre se soltando.
Deixei o imaginário fluir. Porquê seria a cena em que, nesta versão outra que levei para as ideias no intuito de inquirir as minhas próprias de vileiro, Morpheus oferece a Thomas A. Anderson, até portanto um sonolento programador e hacker interpretado por Keanu Reeves na obra de ficção dirigida e escrita pelas irmãs Wachowski, duas pílulas com efeitos diferentes? E se, em vez de Morpheus e Thomas, outra entidade antiga ficasse diante de Nando da VA (Vila Áurea)?
No estranho conforto de uma cadeira praticamente invisível, ocupava o espaço o corpo esguio do velho varão. Incensava a sala com seu cheiro de canela, moca e melaço de cana. Fragrância agridoce. Dava sede, um pouco de náusea e vontade de degustar o ar.
O senhor, na umbra de sua tez, estendeu as mãos. Duas pílulas: uma azul e outra vermelha. O restante da história não precisaria ser exposto senão pelo hipotético indumento de que, cá, ao invés de tomar uma, o sujeito oculto diante da sentença engoliu ambas quando os dentes ainda de leite eram. Nando, rapaz, tomava sua primeira decisão sem copo d’chuva para descer mais fácil.
Nesta Matrix, engole-se as duas pílulas.
Ilusão e verdade operando numa mesma existência. O personagem de “Sintonia” se desenvolve no espaço intermediário entre o sonho do triunfo e os planos falíveis do trajeto sem retorno pelas vias do delito. Órfão de matriz, tendo o luto da avó porquê única legado, sua base foi outra —a rua. Nela, o anti-herói trocou revestimento por capuz e buscou o meio-termo entre preservar sua família do sangue nas veias e corresponder ao fechamento com a do sangue nas mãos. Buscou estabilidade no queima cruzado.
Nando instiga o outro interessado em saber sua história —semelhante a de muitos e muitas em real sintonia com os temas abordados na série— a tomar a pílula ilusória seguida da realista. Convida a desabitar o maniqueísta vício de encontrar que as complexidades impostas pelas desigualdades sociais podem ser facilmente elucidadas a partir de frases dadas ao tino de mundo que rejeita a influência de se considerar as contradições inerentes a fatos sociais.
Ao engolir tanto a promessa de manter a ilusão sobre o horizonte quanto a de lucidez face ao presente, Nando, o Neo da Vila Áurea, mais tomou decisões do que fez escolhas. Precisou ser pragmático enquanto, sabidamente, enganava-se por crer que seria verosímil romper com a criminalidade. Para sobreviver ao envolvente que o cultivava porquê reativo, manteve a devaneante esperança de que tudo não passaria de um pesadelo —ou, no caso de final feliz, sonho.
Tomou duas decisões de uma vez só o Nando. Não teve escolha.