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Seu Araújo, um carcereiro experiente – 26/03/2025 – Drauzio Varella

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Seu Araújo já era carcereiro experiente quando o conheci no Carandiru, em 1989. Tinha o ritmo da fala e a sabedoria de preto velho dos terreiros de candomblé. Foi amizade à primeira vista.

No início, fiquei em incerteza se o ar simplório lhe era natural ou cultivado com requinte profissional, para esconder a sagacidade com que observava o envolvente e o interlocutor.

Morava no Tatuapé, num terreno dividido com as casinhas dos irmãos. A dele ficava nos fundos, atingível por uma escada ao lado de um canteiro com avencas, antúrios e folhagens coloridas. Na parede, vasos de samambaias e costelas-de-adão cuidadas com o carinho de quem começara a vida uma vez que jardineiro.

Todos os anos, seu Araújo convidava os colegas de trabalho para uma sarau junina em lar. Incrível caber tanta gente em espaço tão exíguo. Num dos anos, não pude ir. Na segunda-feira, encontrei-o no recinto da cárcere. Com luz nos olhos, descreveu a reunião que havia terminado às duas da madrugada. Perguntei se tinha ficado feliz:

— Doutor, sabendo levar, a vida é uma sarau.

Provações não lhe haviam faltado, entretanto. Aos 35 anos, dois de seus meninos mais novos morreram de pneumonia, quase ao mesmo tempo; um tinha seis anos e o outro, três. Um mês depois, o rebento mais velho, que acabara de completar 12 anos, brincava com uma esfera no quintal quando caiu desacordado. Faleceu naquela madrugada.

No dia 2 de outubro de 1992, chegou à cárcere às 7h50 para assumir a chefia do Pavilhão Oito, que recebia os condenados reincidentes. Ao passar pela portaria, o colega recomendou que ficasse esperto: havia um “probleminha” no Nove.

O probleminha deu origem à maior tragédia da história dos presídios brasileiros. Uma pugna entre duas quadrilhas provocou uma rebelião que incendiou colchões e levantou barricadas.

No Oito, seu Araújo reuniu os 12 funcionários que vigiavam desarmados os 1.756 presos. Decidiram ser mais prudente recolher os homens dispersos pelo campo de futebol. Caso os reincidentes aderissem, o motim se espalharia pelo presídio inteiro, uma vez que havia sucedido em outra ocasião.

Com calma, foram explicando nas rodinhas que seria mais sensato irem para o recinto interno, porque a Tropa de Choque já entrara no presídio. Quando ouviram os primeiros estampidos, pediram que todos subissem para as galerias.

Soltos nos andares, os presos desentocaram as facas, não para operação suicida de agredir os policiais que invadem com cães e metralhadoras, mas para fazer frente a ataques de inimigos que possivelmente se aproveitassem da confusão.

Seu Araújo concluiu que a única escolha seria trancar os homens, para deixar simples que não tinham aderido à rebelião.

Coube a ele subir para o quinto marchar, o mais problemático da Detenção. Lá, encontrou centenas de presos encapuzados com facas nas mãos. Não foi fácil convencê-los de que seria melhor irem para a tranca, enquanto ele e os colegas montariam guarda junto ao portão que separava o Oito do Nove, para impedir que a PM invadisse o Oito para assestar contas com os marginais que tantos dissabores lhes causavam nas ruas:

— Vocês vão fugir e deixar nós cá dentro. Vamos morrer feito frango no poleiro.

Cingido pelas facas quase encostadas em seu corpo, ele insistia que podiam responsabilizar, que os funcionários também correriam risco de morte se a PM entrasse. Todos falavam ao mesmo tempo, não havia lideranças com quem discutir.

Foi quando Cidão, bandido de longa folha corrida, subiu num banquinho:

— Vamos fazer uma vez que ele diz. Sou piolho de cárcere, nunca vi esse varão faltar com a vocábulo.

Trancaram todos e deixaram as chaves com o pessoal da Faxina de cada marchar, os líderes do pavilhão. A cada hora, os carcereiros avisavam de cubículo em cubículo que, apesar do troada ao lado, reinava a calma no Oito.

Por volta das 20h, as balas silenciaram. Quando deu 23h, ele e o colega Osmar foram até a rua:

— Era uma confusão de PM e viatura levando os corpos para o IML. Falei pro Osmar: “Já imaginou se tivessem invadido o Oito?”.

Tomaram duas cachaças no bar em frente. Na manhã seguinte, voltaram para ajudar na limpeza. Era dia de eleição.

— Nunca imaginei ver sangue puxado com rodo.

Sábado pretérito recebi um telefonema do rebento de seu Araújo: o pai tinha completo de falecer, aos 82 anos. Hemorragia cerebral, a mesma morte súbita que levara o rebento de 12 anos enquanto jogava esfera no quintal.


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