Ainda que modestamente, a gigante Disney tem feito investimentos em teor no Brasil que chamam a atenção. Pensando em duas séries recentes, a ficção “Amor da Minha Vida” e a documental “Volta Priscila“, é notável o desvelo da empresa com a qualidade das produções. Por outro lado, espanta o esforço de permanecer na superfície, sem aprofundar o potencial que as histórias oferecem.
A série com Bruna Marquezine e Sergio Malheiros, uma vez que escrevi ao estrear, é falada em português, mas poderia ser em inglês. Parece um genérico de comédia romântica. Já a série sobre o desaparecimento de Priscila Belfort, possivelmente por temor de ações judiciais, é terrivelmente morna, sem perdão e medrosa.
O lançamento neste mês de “Maria e o Cangaço” confirma a sentimento de que o padrão de qualidade da Disney inclui a suavização dos aspectos mais polêmicos e espinhosos das suas produções.
Livremente inspirada em um livro da jornalista Adriana Negreiros, “Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço” (editora Objetiva), a série em seis episódios procura mostrar uma vez que era a vida das mulheres que acompanhavam os cangaceiros do grupo de Lampião.
A produção supõe que os espectadores conheçam muito a história do cangaço brasiliano. Com exceção de um letreiro inicial, informando que “enquanto o presidente Getúlio Vargas consolidava seu poder, grupos de cangaceiros vagueavam pelo sertão desafiando as autoridades”, praticamente não há contextualização sobre a história que será contada.
É verdade que Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, o mais famoso líder do cangaço, já foi representado em um sem-número de produções audiovisuais, mas será que o testemunha da Disney o conhece?
Por que grupos uma vez que o de Lampião vagueavam pelo sertão desafiando as autoridades? Por que o cangaceiro se ofendia quando o seu grupo era chamado de “quadrilha”? Não há qualquer pista que ajude a responder a essas questões em “Maria e o Cangaço“.
O cangaço é um fenômeno brasiliano, que expõe graves problemas sociais, a ineficiência do Estado e o banditismo no Nordeste desde o século 19 até meados do século 20. Um testemunha que não saiba disso não tem uma vez que entender a fala de um militar no sexto incidente: “Fui enviado para varrer essa praga comunista que vocês chamam de cangaço”.
O livro de Adriana Negreiros ilumina aspectos dramáticos do cotidiano das mulheres que integravam os grupos de cangaceiros. Eram vítimas de violência sexual, praticadas pelos próprios cangaceiros. Caso engravidassem, eram obrigadas a dar os filhos para geração.
A série atenua o drama, mas mostra que a mulher de Lampião tinha coragem para enfrentar, mesmo sem muito sucesso, o machismo do grupo. Maria ajuda outras companheiras, não concorda com que os homens recebam mais comida que as mulheres, protege as mais vulneráveis e até se recusa a ter relações sexuais com Lampião uma noite. “Que novidade é essa?”, ele reclama.
A gravidez de Maria, e todo o drama que resulta desse facto, é o ponto cimo da série, um bom momento em que o roteiro arrisca provocar o testemunha.
Filmada em Cabaceiras, na Paraíba, no interno da região do Cariri, “Maria e o Cangaço” tem paisagens belíssimas, uma retrato feérico, cenas de ação impactantes, ótima direção e um elenco aguçado, com destaque privativo para uma dupla de atores, Isis Valverde e Júlio Andrade, em estado de perdão.
É uma série que merece muito ser vista, mas deixa a sensação de que poderia ter ido mais longe.