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Porquê redigir bons diálogos – ou uma vez que fugir deles com máxima elegância

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Revela-se nisso o erro de um recomendação geral aos criadores de diálogos, a teoria de que deveriam produzir conversas verossímeis ao supremo, quase idênticas às reais. Ora, ninguém aguentaria uma conversa real transposta à página literária, com sua cortesia excessiva, seus cacófatos e suas frases quebradas, seus titubeios e suas repetições, sua imprecisão insuportável. Na ficção, pode ter muito mais eficiência um diálogo ideal, feito de respostas agudas que só se conceberiam mais tarde, onusto de uma ironia que hoje se tornou a novidade convenção, tudo pairando sobre um conjunto rico de subentendidos e ambiguidades. As frases devem ser agudas, sim, mas nunca totais. No diálogo, talvez interesse mais o que as palavras calam, o que os personagens omitem ou ainda não são capazes de expressar.

Eis portanto que se cria o paradoxo: num diálogo o responsável não deveria, segundo Green, expor de modo explícito as motivações dos personagens, mas é nele que se revelam suas características essenciais, sua gentileza ou grosseria, sua fraqueza ou audácia, seu pensamento consumado em vocábulo. Outro rabi encontra a saída perfeita para o impasse, Nelson Rodrigues com as frases terríveis de seus homens execráveis e suas mulheres imorais, e também com suas poses, seus gestos sutis. Nos contos de Nelson tão cheios de diálogos é vasqueiro ler que alguém disse, ou perguntou, ou respondeu, ou exclamou qualquer coisa. A atenção recai nas ações menores: um varão se recosta, ou baixa a cabeça, ou puxa um cigarro, e portanto diz que foi traído por todas as mulheres de sua vida sem que esse expressar precise ser anunciado.

Mas há quem nunca se sinta à vontade na construção dessas cenas tão delicadas, e decida continuar a fugir apesar da repleção de orientações disponíveis. Sou um deles, e ao leitor não terá escapado a evidência de que escrevi um texto inteiro sobre diálogos feito só em parágrafos gordos, sem nunca recorrer a travessões ou aspas. Cá alguns sujeitos falaram, um plumitivo britânico tentou ditar suas verdades, um menino repetiu seu pedido por um passarinho de perdão, um vendedor impiedoso calou sua resposta, um varão difamou todas as mulheres do mundo, e no entanto não foi preciso atribuir a eles nenhuma frase exata. Suas palavras se mesclaram às minhas sem que as distinções fossem necessárias, e coube ao leitor descontar o que remeter a cada voz.

Boa secção de uma literatura contemporânea se vale desse recurso antes inusual, incorpora nos dizeres do narrador as frases de indumento entoadas por personagens vários, turvando fronteiras que antes se viam muito delimitadas por marcadores combinados entre todos. Há dois séculos deu-se a ousadia da fusão dos pensamentos de um personagem aos dizeres do narrador, numa técnica revolucionária que ficou conhecida uma vez que oração indireto livre. Agora se dá essa novidade ousadia: funde-se ao oração corrediço do narrador a fala verosímil de um personagem, numa técnica que tenho brincado de invocar de oração direto livre. Pode não ser tão decisiva quanto a anterior, mas no mínimo tem trocado a forma de uma série de romances atuais, e permitido a autores mesquinhos em diálogos narrar alguma coisa mais do que sujeitos solitários e calados.

E aos poucos até essa forma discreta de diálogo tem oferecido ensejo a práticas mais extravagantes. Em obras grandiosas uma vez que as de W. G. Sebald ou Ricardo Piglia, acontece com insólita frequência que um personagem tome a vocábulo no meio de um parágrafo qualquer e se ponha a falar por tantas páginas que se torne ele próprio um narrador novo, contando as filigranas de sua vida geral, seus encontros marcantes, até mesmo seus diálogos. É o tal oração direto livre agora levado ao extremo, desorbitado. Eis a formosura da literatura em sua multiplicidade indomável, em sua eterna procura de soluções improváveis para que os seres que a habitam nunca se calem, mesmo que tão inexistentes sejam, mesmo que não passem de imaginários.



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