Na ditadura, o orientação dos perdedores é a masmorra ou a morte. Na democracia, é a oportunidade futura de retornar ao governo. A principal virtude do sistema democrático reside nisso: a concorrência entre as elites políticas exclui o recurso à violência, protegendo a sociedade do espectro da guerra social. Daí decorrem as liberdades públicas, a independência do Judiciário e a subordinação dos corpos armados ao poder social. É à luz de tais conceitos que devem ser julgados Bolsonaro e seus asseclas, acusados pelo violação de tramar um golpe de Estado.
Nunca, desde a redemocratização, o STF encarou uma ação penal tão relevante. Os réus sabem que pesa contra eles um rochedo de provas incontornáveis. Resta-lhes recorrer ao via clássico de exibir-se porquê vítimas de perseguição política. A estratégia repousa sobre os desvios judiciais de um STF que prefere a popularidade fácil aos rigores do devido processo legítimo.
Os juízes supremos que, antes, curvavam-se às vontades de Sergio Moro, conferiram a Alexandre de Moraes o papel de xerife-geral da democracia. Na sua encarnação passada, de secretário da Segurança de SP, Moraes foi tachado de “fascista” pela esquerda. Desde que tornou-se relator do inquérito-polvo sobre as fake news e os atos antidemocráticos, a esquerda transfigurou o “fascista” de ontem em indômito herói do povo. Suas peripécias legais oferecem aos réus a única chance de contrariar o previsível desfecho da ação penal.
Moraes não é “juiz procedente”: tornou-se relator pela lógica arbitrária do inquérito-polvo. Também não é um juiz legítimo: figura porquê vítima potencial do planejado ato inicial da conjuração golpista. Quando rejeita declarar seu impedimento, o STF presta um obséquio involuntário à resguardo dos réus.
Não é o único. Embriagados pela noção demagógica de “justiça réplica”, os juízes supremos condenaram os idiotas úteis das depredações na capital federalista a penas hiperbólicas de até 17 anos de prisão. Hoje, diante do dilema posto pelo julgamento de Bolsonaro et caterva, começam discretamente a urdir fórmulas excepcionais destinadas a reduzir as penas daqueles condenados.
Há mais. A maioria dos réus menores do 8 de janeiro foi sentenciada pelo pleno do STF. Graças, porém, a mais uma reviravolta circunstancial do tribunal, o núcleo dirigente da trama golpista será julgado unicamente pela Primeira Turma. Na hora da verdade, o STF tropeça nas placas luminosas com as quais enfeitou seu próprio trajectória.
Os réus perderam a guerra política principiante. O fracasso da revelação bolsonarista de Copacabana atesta que as ruas já não os amparam. Mas a presença vergonhosa do governador paulista Tarcísio de Freitas ilumina uma encruzilhada histórica: a incapacidade da direita de mondar suas inclinações golpistas.
Trata-se de um nó crucial da democracia brasileira. Na dezena que precedeu o golpe de 1964, líderes da direita multiplicaram suas visitas à caserna. O bolsonarismo desenrola esse fio velho de nossa tradição republicana. A ação penal contra Bolsonaro e sua camarilha cívico-militar coloca lideranças porquê Tarcísio, Zema, Caiado e Ratinho Júnior frente a uma opção polar: os réus ou a democracia? A resposta a tal pergunta, mais ainda que a sentença do STF, indicará o estado de saúde do nosso sistema democrático.