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Não me interessa fazer um livro que pegue muito – 23/01/2025 – Tati Bernardi

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Eu tento discutir dizendo que sou mulher e, portanto, ainda vista porquê minoria. Mas ele bafora nos óculos e os limpa na camisa de linho soltinha: “Mas você é branca e o sofrimento de um branco não importa mais, não “viaja muito” pra fora do país. Além do quê, por justificação desse negócio de livro autobiográfico, uma hora você vai completar sendo processada”.

O que eu vivi pertence a mim. E o redactor que renuncia a isso não tem zero. Acho estranho que ele trabalhe com livros e não defenda isso. Ficamos um tempo olhando para nossos celulares, na falta de ideias para o livro e de tópico para o almoço. De repente ele retoma, excitadíssimo: “E se você ‘incorporar’ no material que já tem uma personagem periférica que te ensina o sentido da vida?”.

Porquê dorme o redactor que planeja ser relevante para prêmios e expectativas do mercado em vez de grafar porque precisa tirar aquilo do seu duodeno? Fora que não me interessa fazer um livro que pegue muito. Eu quero pegar mal. A literatura que me interessa é a que pega mal.

O editor pergunta se sofri recentemente qualquer assédio “interessante”. Talvez ele ache que se eu for pelada para um beco escuro minhas chances de ser finalista de um Oceanos aumente bastante.

Nos dedicamos a duplicar alfaces muito temperados por balsâmicos trufados quando lembro que posso ser assediadora, tanto moral quanto sexual, e talvez aí tenhamos uma história original. O editor limpa a testa suada em um guardanapo todo cagado de óleo. Ele está exausto da minha incapacidade em fazer um mísero livro que caiba no que se espera de um livro hoje em dia.

Marco reuniões sábado final do dia e não disfarço reviradas de olhos escancaradas para jovens lentos. Também dei em cima de 80% das pessoas que trabalharam comigo. Sendo elas homens ou mulheres ou gays ou fluidas. Estando eu casada, solteira, com Covid ou infecção urinária.

Ele lamenta eu não ser mãe solo, “se muito que eu acho que funcionaria melhor se você fosse uma mãe solo preta ou indígena”. Digo que eu só gostei da Amazônia porque estava em um hotel 5 estrelas e que não faz sentido usar os indígenas para ser uma escritora branca com um livro “que viaja muito”. Pergunto a ele se esse tipo de literatura oportunista, tão cometida atualmente, não é justamente uma forma de racismo.

O editor pede a conta e, ato contínuo, segura de ligeiro meu queixo: “Uma branca sofrendo por paixão não vai dar evidente, neném”. Na vida talvez eu o exponha em poste, mas no sexo, gostaria que fôssemos agora para qualquer lugar que ele pudesse me impor suas regras e me maltratar de ligeiro com seus livros do Darcy Ribeiro e do Max Weber.

“Talvez, se você tivesse vencido um cancro, poderia, sendo branca, ter um livro em primeira pessoa minimamente respeitado.” Digo que anualmente investigo pólipos, manchas, cistos nos seios, cistos nos ovários, um tumor no osso extrínseco. Mas até agora zero maligno, infelizmente.

Antes de o editor partir, ele diz que preciso me reinventar porquê escritora. Ele é só um varão, mas me aproximo do seu rosto, cotovelo ralando de ligeiro ali, e digo em seu ouvido: “Nunca, neném”.


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