Esporte
Marco dos 40 anos de axé music, cantiga tem mensagem racista e sexista
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A buraco solene do Carnaval de Salvador, nesta quinta-feira (27), será marcada por uma homenagem aos 40 anos do axé music. Grandes estrelas que consolidaram o movimento músico vão se apresentar na capital baiana.
O destaque será o cantor, compositor e multi-instrumentista Luiz Caldas, 62 anos, considerado o pioneiro do axé music pelo lançamento do álbum “Magia”, em 1985. A obra foi um imenso sucesso mercantil e ajudou a propalar esse estilo de música carnavalesca para o Brasil.
Apesar disso, uma das canções de maior sucesso do álbum, cantada (e dançada) massivamente na folia daquele ano, nas emissoras de rádio e nos programas de tevê, não deverá fazer secção das homenagens em 2025.
Ou, pelo menos, se tocada nos trios da folia, causará constrangimento público pela mensagem racista e sexista da sua letra.
“Fricote”, de Luiz Caldas e Paulinho Camafeu, é um marco na história do axé music. A coreografia embalou multidões nas ruas de Salvador e chamou atenção da indústria fonográfica vernáculo para a produção músico da cidade.
A música é o carro-chefe de um álbum repleto de hits porquê a cantiga que dá nome à obra, que passeiam por diferentes gêneros musicais, porquê reggae, merengue, frevo, já revelando a pluralidade daquele movimento. “Magia” sintetizava as experimentações que Luiz Caldas já realizava no trio Tapajós e na orquestra Acordes Verdes, com parceiros porquê os músicos Alfredo Moura e Carlinhos Brown, outra referência primordial.
Desabono e sexualização da mulher negra
No entanto, um olhar contemporâneo vê o quanto a elaboração é carregada de mensagens racistas e machistas.
Ao retratar uma “nêga do cabelo duro, que não gosta de pentear”, e que é cândido de vaia público e da sexualização, a cantiga evidencia um contexto de “racismo recreativo” – uma forma específica de perpetuar opressões racistas por meio do humor.
A letra ridiculariza a negra que “quando passa pela Baixa do Tubo, os negões começam a gritar”. A partir daí, é uma sucessão de trocadilhos com conotação sexual, zombando das possibilidades que se podem fazer com o corpo daquela mulher negra: “Pega ela aí, pega ela aí, pra quê? Pra passar batom. De que cor? De violeta, na boca e na bochecha”.
Parece uma folia boba, muito típica da atmosfera burlesca do Carnaval. Mas, na verdade, é o registro de uma quadra em que o racismo recreativo era normalizado e aceito, e os estereótipos sobre pessoas negras eram tratados porquê meros divertimentos.
A naturalização do deboche em relação à estética negra e a objetificação do corpo feminino são reflexos de uma sociedade que ainda pouco questionava criticamente essas representações.
Ainda que o Carnaval seja um espaço de irreverência e permissividade, o oração de “Fricote” reforça uma tradição de desqualificação do corpo preto, principalmente da mulher negra, que persiste ainda hoje em muitos aspectos da cultura popular brasileira.
Felizmente, ao longo dos últimos 40 anos, avançamos em direção a uma consciência racial e de gênero maior, para não descobrir mais perdão nesse tipo de tratamento da mulher negra retratado naquela cantiga.
Ainda que o Carnaval continue marcado pela hipersexualização feminina, numa preocupação dos compositores em mandar as mulheres descerem, sentarem e empinarem, nota-se uma crescente produção músico que exalta a autoestima e a força das mulheres.
Ivete repete fórmula de sucesso
Não é por eventualidade que Ivete Sangalo, uma das representantes do axé music atual, repete em 2025 a fórmula que fez sucesso no ano pretérito. Depois de “Macetando”, hit da folia em 2024, a cantora volta a misturar o ritmo do Pagodão com letra de empoderamento feminino para apresentar “Robustez de Gostosa”, a mais potente concorrente ao título deste Carnaval.
A receita também foi utilizada em outra “Música do Carnaval” e “Toda Boa”, do Psirico, de 2008. Ao longo dessas quatro décadas, já tivemos outras experiências de hits de exaltação do poder feminino, de forma mais poética.
Canções porquê “Divindade do Paixão”, de Adailton Trova e Valter Faria, e “Requebra”, de Pierre Onassis (da “Divindade de Marrom”), demonstram essa tentativa de valorização e saudação, ainda que a centralidade do corpo feminino desejado permaneça uma estável.
Contradições de um movimento popular e mercantil
Mas o racismo da letra de “Fricote” não é alguma coisa só. Basta conferir a cor da pele dos principais artistas que ao longo desses anos mais lucrou com essas canções de origem popular e bases rítmicas negras.
Toda a genialidade da rica produção músico que gerou o axé music foi muito muito explorada pela indústria músico, que selecionou a dedo quem representaria aquele movimento.
As negras de cabelo crespo, debochadas em “Fricote”, não foram as consideradas “rainhas do axé music”, apesar do pioneirismo de intérpretes talentosas porquê Marinês, da Margem Reflexu’s; Marcia Short e Alobened, da Margem Mel; Patrícia Gomes, da Timbalada; Perdão Onasilê, do Ilê Aiyê, e Margareth Menezes, a primeira a espalhar essa música da Bahia pelo mundo.
Todas fundamentais para solidificar a força popular e mercantil do movimento, tiveram muitas dificuldades para furar o bloqueio do racismo estético do axé music. Uma façanha somente conquistada pelos cantores de pagode incorporados ao movimento, porquê é o caso de Márcio Victor, Léo Santana, Xanddy Simetria, Tony Salles e outros jovens negros da periferia de Salvador alçados ao estrelato.
Entre as contradições do axé music, curiosamente, temos que um dos compositores da música “Fricote”, Paulinho Camafeu, participou, dez anos antes, de uma verdadeira revolução cultural no Carnaval de Salvador. Foi ele quem compôs “Mundo Preto (Que Conjunto é Esse?)”, cantiga que deu voz ao conjunto afro Ilê Aiyê, em 1974, pioneiro na asseveração do orgulho preto na folia baiana.
O Ilê Aiyê, com seus integrantes de cabelos black power, vestes coloridas e exaltação às heranças africanas, mudou para sempre o Carnaval e a estética da cidade. O movimento dos blocos afro, seguido por Olodum, Muzenza e tantos outros, pavimentou o caminho para a consolidação do axé music.
Mais do que um gênero, o caldeirão axé music mistura a batida dos tambores com o som da guitarra baiana, amplificada pelo trio elétrico de Dodô e Osmar, incorporando a poética amorosa dos Novos Baianos pela Bahia e seu povo, a asseveração negra dos blocos afro e a rebeldia cosmopolita dos Doces Bárbaros.
Na tradição ketu/nagô, “axé” é força vital. E essa música, nascida do Carnaval, também é um símbolo principal de identidade e resistência. O axé music é um movimento marcado por contradições, atravessado por desigualdades sociais, conflitos raciais, ambições comerciais e escolhas midiáticas nem sempre coerentes com suas raízes.
Que a celebração destes 40 anos nos permita revisitar essa história com orgulho, mas também com um olhar crítico e transformador. Que possamos trovar o povo preto, em privativo, as mulheres negras com mais distinção e saudação, honrando as dores e ausências que fazem do Carnaval uma frase tão necessária.