O estrondo de uma novela qualquer embala o cochilo de minha mãe. Olho para essa cena e quero morrer de paixão. Quero colocar num potinho e regelar para poder olhar isso para sempre. Não sei se foi sorte ou carma, mas fui criada livre de traumas por uma mulher fabuloso, independente, amorosa, inteligente, enxurrada de personalidade, divertida. Me pergunto porquê ela consegue, sua voz é sempre contente, seu rosto guarda sempre um sorriso. Parece lorazepan misturado com anfetamina, mas é só o jeito dela mesmo.
Por tudo isso, decidi que ela entrará para as estatísticas e viverá mais de 100 anos, o que pelas minhas contas me daria mais uns 25 anos de convívio com essa mulher que é minha mãe, mas minha ração de ansiolítico, minha sessão diária de terapia, minha coach de sobrevivência, meu firmamento e para onde eu corro para me homiziar quando o mundo se revela o lugar horroroso que ele é.
O problema é convencê-la de que vale a pena virar inimiga do termo da vida ou, pelo menos, chegar a ele lúcida e pelas próprias pernas, e que para isso ela precisa fazer caminhadas, estiramento, musculação, maneirar no gulodice, diminuir a pancinha, controlar a pressão. Eu entupo sua caixa de mensagens com links de reportagens sobre os benefícios da massa magra para o corpo, para a memória, para a perda de peso, para o coração. O que ela faz? Responde com um emoji de “joinha” e me ignora.
Vou enlouquecer minha mãe com a cobrança de que ela precisa se cuidar. É para seu muito, digo. Pronto, me transformei no que eu mais temia, mas agora já posso me vingar e usar o mesmo tom dramático com o qual ela usava para tentar gerar uma pessoa decente. A diferença é que só quero que ela seja saudável e não morra nunca, se for verosímil, e não me deixe cá sem ela.
“Quem não gosta de treinar, tem que se preparar para tomar remédio”, diz um vídeo. No outro, “caminhar mais pode aumentar a expectativa de vida em 11 anos”. Por que ganhar músculos na velhice é tão importante. Colocar as pernas para cima melhora a circulação. Uma vez que treinar o cérebro para a atividade física. Uma vez que desabar e não se machucar. Ela lê? Sim. Ela muda o estilo de vida? Nem pensar. Suas tardes são intercaladas por doramas e jogos de vôlei, na TV.
Dona Guta sabe que estou certa. Portanto, se matricula no pilates, faz uma lição e desaparece. Acompanha meu pai na natação e passa a semana rindo das próprias dores. Ameaço, digo que se ela permanecer doente, boto num asilo. Não se abala, não perde o riso. Tenho me perguntado se faço isso por ela ou por mim. O que me move é paixão, mas também o terror de não receber mais suas mensagens amorosas, de não ter sua perspectiva sempre otimista diante do pior cenário, de não ouvir mais a sua voz que transforma qualquer maremoto em calmaria.
E assim seguimos. Ela pede que eu avise quando chego em vivenda, apesar de eu ser uma marmanja casada. Eu mando estudos sobre como a creatina pode ajudar na perda de massa muscular. Fazemos planos de repetir uma viagem de mochila porquê há 20 anos. Aproveito para lembrar que os 77 só são os novos 55 para quem malha o quadríceps. Ela manda um emoji de gargalhada e diz que me governanta. Não desisto.