Desde que o ser humano aprendeu a nomear, começou a dividir. O firmamento virou o oposto da terreno. O quente virou inimigo do insensível. O paixão virou antônimo do ódio. E a gente cresceu acreditando que tudo precisava ter um lado. Uma vez que se a existência só fizesse sentido se fosse dual, oposta, combativa. Uma vez que se a tranquilidade morasse num lugar onde só um lado pode vencer.
Mas a pergunta incômoda é: quem inventou o lado claro? Quem foi o iluminado que determinou que tudo no mundo precisa de um contra? Que só é provável subsistir se for para anular o outro?
A polarização, hoje tão visível nas redes sociais, nos jantares de família e nas urnas, não nasceu com os algoritmos. Ela é anterior ao wi-fi, anterior à política, anterior à cultura. Está embutida no código da humanidade, desde quando as histórias passaram a ser contadas com heróis e vilões, mocinhos e bandidos, salvadores e condenados.
Só que a polarização do pretérito criava mitos. A de agora cria monstros reais.
Vivemos tempos em que discordar virou ofensa. Em que opinar virou prenúncio. Em que pensar dissemelhante é sinônimo de pensar falso. E isso vale para tudo: política, religião, ciência, futebol, maternidade, vacinação, alimento, astromância, lucidez sintético e até cabelo. Se você escolheu um lado, parabéns. Agora você tem a obrigação de odiar o outro.
Mas quem foi que disse que só existe lado A ou B? Quem determinou que é proibido refletir no meio do caminho? Quando foi que o cinza passou a ser medo e o estabilidade virou preterição?
A polarização anestesia. Ela não pede que você pense, ela exige que você reaja. E quanto mais rápido, melhor. Porque nesse novo tribunal do dedo, quem pensa demais vira suspeito. Quem muda de teoria, vira traidor.
E enquanto a gente se mata por verdades absolutas, os donos do jogo seguem impunes, rindo da nossa facciosismo. A polarização radical não só emburrece, mas também nos transforma em soldados de causas que nem sempre são nossas. E pior: ela nos rouba o principal de uma sociedade democrática, que é o recta de coexistir com o dissemelhante.
Hoje, pleitear por política é mais geral que votar com consciência. Cortar relações virou prova de conformidade. Tutorar o diálogo virou “isentão”. E, no meio disso tudo, a pergunta que ninguém quer fazer: e se o outro não estiver totalmente falso? E se você não estiver totalmente claro?
A polarização traz prejuízos reais. Ela rompe laços, desumaniza, violenta. Nos transforma em torcedores cegos, incapazes de reconhecer valor em quem pensa dissemelhante. Ela nos treina para odiar primeiro e entender depois (se sobrar tempo, simples!). E, quase sempre, não sobra.
Mas é simples que ela também seduz. A sensação de pertencimento, de tribo, de identidade é viciante. Estar de um lado é confortável. É mais fácil ter respostas prontas do que mourejar com dúvidas legítimas. O problema é que esse conforto serpente dispendioso: a sua liberdade de pensar por conta própria.
Não se trata de varar o conflito, pois ele é secção do incremento humano. Se trata de parar de transformar todo conflito em guerra. Se trata de parar de querer vencer todas as conversas. Porque, no término, ninguém vence quando todo mundo perde a escuta.
Somos mais complexos do que hashtags e mais profundos do que slogans. E a sociedade que queremos não vai nascer de quem grita mais tá, mas de quem aprende a escutar sem precisar concordar. O reverência à diferença é o único caminho viável para qualquer porvir que se queira justo.
A democracia morre onde o pensamento único é festejado. Onde o contraditório é ridicularizado. Onde o diálogo é substituído por ataques. Onde a empatia dá lugar ao ódio. Onde ninguém mais se pergunta: por que estou lutando mesmo? E por que preciso que o outro perda para eu vencer?
A humanidade não é feita de dois lados. É feita de bilhões de nuances. E talvez a verdadeira revolução seja essa: parar de tentar vencer discussões e inaugurar a erigir pontes.
Porque no término das contas, a única coisa pior que estar falso… é encontrar que só você está claro.