O primeiro Oscar para um filme brasílio produziu a catarse nacional. Infelizmente, nem todo mundo entrou na sarau. Muita gente da direita brasileira não celebrou. Se falam do filme, é para fazer alguma ironia ou sátira da política atual. Por quê?
O texto de muitas dessas manifestações é o de confrontar a ditadura militar à suposta ditadura atual: a do Supremo. É um paralelo fraco, por mais que os inquéritos do Supremo possam e devam ser criticados. Não há semelhança entre as pessoas presas por tentarem um golpe de Estado que derrubaria a democracia —com penas, sim, excessivamente longas— com a prisão, tortura e assassínio de pessoas que lutavam pela democracia.
Os golpistas de hoje têm julgamentos públicos e são defendidos por advogados —além de podermos falar livremente deles na prensa e nas redes. Os democratas dos anos 1970 eram censurados, torturados e mortos.
E mesmo aceitando o paralelo, o repúdio ao filme não faz sentido. Se o que vivemos é digno de protesto, portanto a ditadura militar —que foi muito além do que vivemos hoje— o é ainda mais. Celebremos, portanto, “Ainda Estou Aqui“!
O real motivo para tanta gente torcer o nariz para Walter Salles e Fernanda Torres —e que também é o motivo de defenderem com unhas e dentes os golpistas de 2022 e 23— é outro, e seu nome é Bolsonaro.
Bolsonaro fez da sua curso uma luta pela memória do regime militar. Tinha no gabinete de deputado um edital com a frase “quem procura osso é cachorro”, sobre os esforços de se investigar os crimes da ditadura. Cuspiu no busto de Rubens Paiva no Congresso. Quando presidente, conspirou e tentou persuadir generais a embarcarem em seu projecto de golpe de Estado.
É por culpa de Bolsonaro que governadores uma vez que Ratinho Jr, Romeu Zema e Tarcísio de Freitas silenciaram sobre o Oscar brasílio. Outros governadores de direita ou centro-direita —uma vez que Ronaldo Caiado e Eduardo Leite— postaram homenagens. Mostram sua independência. Enquanto Bolsonaro for a grande referência da direita, ela não poderá ter a democracia uma vez que um valor inequívoco seu.
O próprio Walter Salles, é verdade, esticou a corda da polarização ao volta do filme ao expressar, numa entrevista, que “…durante quatro anos, o país virou para a extrema direita e nunca teríamos tido a possibilidade de filmar durante esse período”. Não explicou, todavia, qual ato do governo Bolsonaro inviabilizaria a filmagem.
A história que Salles contou com maestria é muito maior do que a disputa eleitoral brasileira. Os valores que ele traz deveriam ser universais. De um lado, sequestro, tortura e assassínio extrajudiciais, efetuados por agentes não fardados e sem qualquer registro burocrático. Do outro, Eunice Paiva, enfrentando o regime e buscando a verdade, não com luta armada e atentados, mas por meio da ensino e do ativismo. Tudo isso, lembremos, em resguardo da família. Tem que se esforçar muito para ver problema.
Num mundo em que “tudo é política” —e política partidária—, você não pode nem ir ao cinema impunemente. Há alguns anos detrás, havia quem se recusasse a torcer pela Seleção de Neymar. Arte, talento, orgulho pátrio e mesmo valores universais são sacrificados no altar da disputa política. Não sejamos assim. Direita, ouse festejar o bom e o belo onde ele estiver. Aí, sim, você estará ajudando a cultura.