Em 1983, uma professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, sacudiu o mundo acadêmico ao opor à tradição narrativa da arte italiana renascentista, protótipo dos estudos de história da arte ocidental, a cultura visual e descritiva dos mestres holandeses. Em “A Arte de Descrever“, Svetlana Alpers propunha, com base nas obras do século 17 holandês, uma compreensão da pintura independente da tradição textual, da tradução e da parábola. Uma arte para ver, não para ler.
Quarenta anos depois, Alpers publica, aos 88 anos, uma coletânea de textos de quem descompasso com a arte predominantemente discursiva do presente os torna ao mesmo tempo anacrônicos e atuais. Tomando emprestado o título de um ensaio de 1977, de quem sentido talvez soe hoje ainda mais provocador e contundente, “Is Art History?” (arte é história?, Hunters Point Press) reúne textos da autora desde o início dos anos 1960.
Um em privativo (de 2002, até agora inédito) nos fala mais diretamente: “Instances of Distance” (“Instâncias da Intervalo”), sobre os retratos de indígenas que Albert Eckhout, trazido ao Brasil por Maurício de Nassau durante a ocupação holandesa, pintou em meados do século 17. Ao privilégio do olhar, Alpers acrescenta a qualidade da intervalo tão vilipendiada num mundo em que a representação artística vai sendo reduzida, por razões políticas ou morais, ao reconhecimento e à confirmação de modelos e discursos que a precedem.
Houve um tempo em que a qualidade da obra costumava ser medida pela diferença e por sua autonomia, pela revelação surpreendente de sentidos que não podiam ser enunciados de outra forma. Não mais. Alpers lembra a função da intervalo entre a representação e o real, entre a representação e a sua recepção, num momento em que é crescente o interesse não mais pelo confronto, mas pela proximidade, pela identificação, pela “similaridade entre a obra e o testemunha”.
Isso não quer expressar que ela não seja sensível às contradições da história. Quando menciona a missão iluminista de Maurício de Nassau, Alpers não ignora que o patrono das artes e das ciências fosse um proprietário de pessoas escravizadas envolvido pessoalmente no tráfico. Convidada em 2002 para a buraco da exposição das obras de Eckhout trazidas de volta ao Recife, relatou com perplexidade a “idiossincrasia” de um evento em que todos eram brancos, exceto as enormes figuras penduradas nas paredes e as funcionárias que recebiam os convidados num elegante banheiro de mármore.
O que a move, mas, não é o lugar-comum da sátira que supõe que, por serem obras de uma potência colonial, e não mormente importantes do ponto de vista artístico, essas representações nas quais os indígenas aparecem despidos sejam necessariamente depreciativas. É aí que entra a compreensão dos efeitos da intervalo na própria produção da obra.
O que acontece nesses retratos de corpo inteiro e tamanho real é o inverso da desdoiro dos colonizados: o objeto da pintura põe em questão a sua própria estatura, fazendo uma “posição” entre o estranho e o familiar, entre o real e a representação.
Na arte holandesa da estação, retratos desse porte eram reservados a figuras de poder. Ao simbolizar os indígenas à maneira de grandes burgueses, Eckhout produz um estranhamento. O exótico passa a ser real.
Isso não quer expressar que esses retratos sejam uma representação realista dos indígenas, mas que põem em questão a representação dos espectadores, confrontados com um espelho às avessas. No bojo da experiência colonial, esses quadros, de quem valor nominal deveria ser a representação etnográfica do outro, produzem na verdade um estranhamento de si.
“A percepção do estranho é um vista do processo de conscientização e conhecimento forçoso à produção artística.” Alpers aponta dois caminhos possíveis desse processo: tornando estranho o que era familiar ou tornando familiar o que era estranho. Em ambos, a intervalo é a pedra de toque.