Preciso tirar esse peso das minhas costas. Preciso permitir meu erro. Farei, portanto, desta pilar meu genuflexório e do mundo meu confessionário: ontem, pela primeira vez, traí a minha namorada.
Estamos juntos há dez meses. Trezentos dias em que fui mais leal do que um marido cristão num narrativa do Nelson Rodrigues. Nem nas semanas em que, por conta do trabalho ou dos filhos, ficamos afastados, nem em viagens, quando zero do que eu fizesse teria a menor chance de vir a público, pulei a tapume. Anteontem, porém, não aguentei.
Não foi premeditado. Diz o vulgo que a ocasião faz o ladrão. Sem querer me eximir da responsabilidade: se não faz a traição, a ocasião certamente a favorece.
Era tarde da noite. Estava estirado no sofá, flanando pelas inúteis planícies do Instagram. Passa videozinho de bebê lambuzado de mingau, passa foto de periquito em cima de mini-skate, passa foto de um rosto contraindo o bíceps enquanto segura um livro de filosofia –legenda: “Tudo que sei é que zero sei. Nietzsche”— até que uma imagem me flecha feito cupido. A Resguardo Social do meu superego quase manda um alerta à tela da consciência, triângulo amarelo com exclamação no meio: transe!
Que imagem era aquela? Era o aviso de que já estava disponível, na Apple TV, o sexto capítulo da segunda temporada de Ruptura. Lúbrico, meu dedão escorregou até o ponto G do controle remoto. Quando vi, já estava vendo.
Uma vez que sempre, nessas ocasiões, logo em seguida o êxtase —os créditos brancos subiam sobre a tela preta uma vez que a fumaça de um cigarro post coitum— veio o pânico. O que foi que eu fiz? Por quê? E agora?
Cada parelha tem seu convenção. Nem todas as relações são monotélicas. Muitos aceitam que as séries comumente vistas a dois possam ser assistidas separadamente. Infelizmente, não era o nosso caso. Muito pelo contrário.
Foi um primórdio difícil. Eu estava todo entregue, ela jogava duro. Lembrava aquele figura entusiasmado dos anos oitenta em que um gambá enamorado era sempre esnobado por uma gata —digo, em minha resguardo, que eu era um esnobado muito cheiroso.
Contrariando os conselhos dos amigos, meu desconfiômetro, o bom siso e os protocolos mais básicos do xaveco, na segunda ou terceira vez em que nos vimos a pedi em namoro. Ela se fez de desentendida. Veio com um papo mezzo hippie, mezzo ROTA, de que namoro não se decretava, namoro se construía –toma, gambá!
Até que um belo dia, do zero, ela disse: “sabe o que eu queria? Uma série pra gente maratonar”. Juntei as pontas: se ela queria ver vários episódios de uma série e queria fazê-lo ao meu lado, só podia ser namoro.
Desde portanto, o streaming é nossa lagoa Rodrigo de Freitas e meu sofá é um pedalinho, no qual singramos Fauda, Homeland, Louie e, agora, com Ruptura, pela primeira vez, atravessávamos uma série em tempo real, incidente a incidente.
Quando saía um novo e estávamos separados, aguentávamos firme. Trocávamos zaps motivacionais. “Você consegue! Sábado a gente assiste!”. Até a última sexta.
Não sei o que faço, se ajoelho no milho pedindo desculpas ou se chuto o balde e proponho abrirmos a relação. Cada um pode ver o incidente que quiser, quando desejar, desde que conte ao outro, dando a ele (ou ela) a chance de chegar ao mesmo ponto da temporada.
É um movimento aventuroso. Conheço muitos casais que abriram a relação no streaming e agora assistem, na solidão de suas poltronas, às séries favoritas. Torçam por mim. Por ela. E principalmente por Mark C., Hellen R., Irving e Dylan —eles sim, encarando as agruras de uma vida dupla. (Renda que não é spoiler, meu paixão).