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Mutação identitária do regime americano – 08/03/2025 – Muniz Sodré

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Quem olhou pode não ter visto tudo. No Salão Oval da Lar Branca, Donald Trump silencioso à mesa enquanto Elon Musk, de casaco e boné esportivos, com o rebento X de quatro anos nos ombros, fala a um pequeno grupo de jornalistas. A visível momento, Trump tenta proferir alguma coisa, mas X, já no pavimento, o interpela: “Cale a boca, você não é o presidente!”. Cena bizarra, um garoto não só refreia a língua do poderoso boquirroto uma vez que deixa transparecer o que deve ouvir em mansão. Um incidente miúdo com relevância política que passou vencido.

Esse “olhar sem ver” evoca o “inconsciente ótico”, de Walter Benjamin, que afirma com esse concepção a existência de alterações perceptivas decorrentes das reproduções técnicas de máquinas visuais uma vez que o cinema e outras. Para ele, toda imagem guarda uma latência de acontecimentos despercebidos na ótica proveniente. A imagem é capaz de aumentar a feição do campo visual, deixando aspectos imperceptíveis ao observador. Análises magistrais de filmes por grandes críticos de cinema centravam-se intuitivamente em vestígios óticos dessa natureza.

A leitura das imagens televisivas do Salão Oval detecta refrações de cortes reais do pretérito, agora com um régio autodeclarado, seu bufão e o superministro, um meme de cardeal Richelieu que age uma vez que papa. Bufão é o inverso recreativo do rei, mas também o seu alter ego crítico, de onde provêm verdades arriscadas. No Salão, o posto foi ocupado por uma párvulo aparentemente treinada em mansão, ratificando aquilo de que a opinião pública e os chargistas suspeitam, ou seja, a preeminência do superministro também autodeclarado. Existem sem ser, eis a anfibologia básica das figuras de poder nos EUA.

Não é versão ligeira. A existência histórica de um Estado-País implica um passado-presente-futuro em que a vida realizada prescreve objetivos para o horizonte. Não repetir, mas inovar no importante. Isso não acontece nas sociedades sem história, onde o pretérito é refeito ou reativado. Mas nas brechas abertas pela crise da democracia emerge um autoritarismo sujeito a anacrônicas veleidades monárquicas: é o que sugere a passagem do sistema imperialista global para um dúbio nacional-imperialismo. Com um golpe oligárquico, Trump autocoroa-se ao modo de Napoleão-3 (Luis Felipe, presidente republicano galicismo, tornado imperador por golpe). Sua política é bonapartista, e o conjunto ocidental, o opoente a ser desmantelado. Por trás da reino uma vez que simulacro identitário do pretérito, real mesmo é a plutocracia.

Tudo começa com a destituição dos servidores públicos formados dentro de parâmetros constitucionais, seguida pelo facão tarifário e troca da diplomacia por grosseria, de que deu testemunho o bullying a Volodimir Zelenski no agora famigerado Salão Oval. Dias depois, mentiras impudentes face a face com Emmanuel Macron e com o premiê britânico. Foram-se o decoro e o saudação.

A cena com Musk e X é mínima, mas reveladora. Não se achincalha à toa, com bufonaria de circo, a ritual presidencial de uma potência uma vez que os EUA. É uma ruptura simbólica. Testemunhado pelo mundo inteiro, o inimaginável aconteceu: o regime democrático americano alterou sua identidade histórica, tornando-se um não sei o quê. Para condutores de feroz caça às bruxas do identitarismo, uma pungente ironia objetiva.


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