Conecte-se conosco

Esporte

Um país que Hollywood esquece ou esconde – 07/02/2025 – Mario Sergio Conti

Published

on



A divinização do Oscar se dá no dia da premiação, na missa negra no tapete vermelho. Ela associa esbórnia e indústria, dança de máscaras de Veneza e de fantasias no Copacabana Palace, conclave vaticano e olimpíada parisiense, Paraíso de Dante e Programa Silvio Santos.

Também é trepidante a romance que culmina na entrega de estatuetas de seres sem genitália mas de punhal na mão, uma vez que disse Dustin Hoffman ao lucrar uma. Há pescotapas e psicopatas, o zurro de bilhões de asnos virtuais, cancelados que revidam baixarias, marqueteiros de deixar Sidônio siderado.

Espremido entre modinhas e mexericos, o cinema escorrega para o segundo projecto no Oscar. No Nobel de Literatura é dissemelhante: o critério do comitê que decide o prêmio é vulgarizar escritores pouco lidos fora de seus países. Foi o que ocorreu com a bielorrussa Svetlana Alexievich, a polonesa Olga Tokarczuk e há pouco com a sul-coreana Han Kang.

Graças aos deuses da sétima arte, uma indicação ao Oscar deste ano adotou o critério do Nobel. Ela destacou um cineasta incógnito fora dos Estados Unidos e ignorado pelo ignorante público ianque: Sean Baker, de 53 anos. Ele tem mais prestígio que plateia, apesar de seus filmes não terem uma pinga de hermetismo.

“Anora” disputa seis categorias, e quatro o premiam diretamente: melhor filme, diretor, roteirista e editor. Antes, já abiscoitara a Palma de Ouro no Festival de Cannes com um filme que custou US$ 6 milhões e arrecadou US$ 40 milhões até agora. Zero mau.

Uma vez que em suas sete fitas anteriores, feitas ao longo de 24 anos, Baker privilegia em “Anora” personagens de duas estirpes: imigrantes que tentam fazer a América e prostitutas (agora chamadas em inglês de “sex workers”) sem sombra de glamour. São espécimes de um país que Hollywood esquece ou esconde.

De maneira universal: Baker filma os rebotalhos para quem o sonho americano vira pesadelo. Faz filmes em que pululam os na pior, famílias estilhaçadas, endividados, desempregados, gente sem terreiro nem beirada que se esfalfa na rua faça sol ou chuva. Trata-os com empatia e sem nhe-nhe-nhem. Quer compreendê-los.

De maneira específica: os imigrantes e as trabalhadoras do sexo representam um povo desdenhado e despolitizado —os que vivem da mão para a boca, as classes média e baixa rumo ao fundo do poço, os que comem o hambúrguer que o McDonald’s amassou. Uma vez que Baker preza os fracos, filma também crianças e bichos; e mulheres sempre têm destaque.

Em “Take Out”, imigrantes chineses sem green card fazem delivery de bicicleta. Em “O Príncipe da Broadway”, eles vêm de Gana e vendem roupas falsas em cafofos. Em “Anora”, são estrangeiros o pimpolho de um oligarca, seus empregados armênios e a piranha –imigrante de segunda geração– com quem se vivenda em Las Vegas.

O filme tem o pique de uma comédia romântica e de pastelão que acaba em drama. O mais hilário é o armênio Toros, feito por Karren Karagulian, ator-fetiche de Baker. O herdeiro do oligarca é um juvenil repugnante com ejaculação precoce e que não tira os olhos do videogame. O herói troncho é um larápio pé de chinelo que mora com a avó.

Baker amadureceu o estilo em “Anora”. As cenas continuam a ser em locação, não em estúdio. O elenco prescinde de estrelas —a exceção é Willen Dafoe num papel menor do notável “Projeto Flórida”, tido uma vez que seu melhor trabalho no cinema –incorpora amadores e se esmera nas improvisações. Embora a câmera de mão grude nos personagens, o filme dá menos e sentimento de subjetividade e mais a de objetividade racional.

Em “Take Out”, o efeito é parecido. O filme acompanha um entregador de comida por Manhattan. Ele pedala em zigue-zague entre os carros, sob a chuva. Chinês, não fala inglês e é esnobado pelos americanos. Tem uma dívida enorme e roubam-lhe a féria; nem por isso o filme fica piegas ou protesta –vê a exploração de perto e registra o desespero do imigrante.

A desgraça do rapaz é absoluta. Mas um colega que não simpatiza com ele resolve o problema, ainda que só por um período. Iluminação semelhante ocorre em “Projeto Flórida”: o gerente interpretado por Willem Dafoe é de uma clemência misteriosa. Em “Anora”, a mesma coisa –o bandido bocó é o único a ajudar a pequena espoliada pelo minioligarca.

O que concluir? Que a solidariedade entre fracos é o caminho? Que com humanitarismo se chega à salvação? Que cada qual conclua por si mesmo, porque os filmes de Sean Baker não oferecem soluções, mas perplexidade –o outro nome da arte intranquila.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul aquém.



Acesse a fonte

Continue lendo
Clique para comentar

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Chat Icon